O Próximo

Camila Smid
2 min readOct 31, 2022

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Eram por volta de dez da noite quando entrei pelo portão do meu condomínio e, com as chaves na mão esquerda e o celular na direita, vi passar por mim a moça de vermelho. Ela murmurou um boa noite educado, e eu não me contive: em vez do habitual eco de “boa noite” que se dá a estranhos, respondi de pulmões cheios:

— Muitíssimo boa noite, especialmente agora!

Ela não levou nem dois segundos para virar-se em minha direção com um sorriso atravessando o rosto e o peito, já aos pulos e aos berros:

— GANHAMOS! MEU DEUS DO CÉU, AINDA EXISTE ESPERANÇA, GANHAMOS!!!

Eu nunca havia abraçado com tanto amor uma completa desconhecida. Não era aquele abraço que se dá quando estamos esperando que a pessoa solte logo, ou aquele em que o peito mal se encosta — se não estivéssemos as duas pulando em círculos, eu certamente poderia sentir o coração da menina pulsar no corpo todo. Menina. Éramos meninas ali, como crianças que se encantam e afetam alegremente quando descobrem um gosto em comum. Nosso gosto em comum era esse mesmo: esperança.

Ela não gritou sozinha. Inclusive, depois do grito inicial de identificação mútua, ficamos por um longo período fazendo questão de que os vizinhos todos ouvissem: comemorávamos. Aliviadas, ensandecidas, contagiosas, comemorávamos! E depois de toda essa sirene de emoções que deixamos bradar no jardim do condomínio, caminhamos juntas em direção ao prédio em que — coincidentemente — nós duas morávamos.

O condomínio tinha três edifícios; o nosso era o último, o mais distante. Pois o caminho inteiro de varandas, tantas tão verde-amareladas com suas bandeiras opressoras, ouviu nosso celebrar. Ela falava em alto e bom som:

— Pensava que só tinha vizinhos cruéis! Que bom encontrar uma aliada!

Meu rosto estava dolorido de tanto sorrir. Mal consigo me lembrar do que eu respondia, me sentia um passarinho quando voa embriagado e berra incessavelmente ao encontrar um outro igual. Entramos juntas no elevador, ainda falando — ela contava sobre como as ruas estavam lindas e ocupadas de gente de coração bom, e eu sentia vontade de ter estado lá. “Fiquei com a família, torcendo de casa.” é a única coisa que lembro ter dito. E ela não me torceu o nariz nem julgou minha ausência na multidão acalorada. Ao contrário, sorriu e me olhou com carinho, e disse que entendia. Subimos breves andares do elevador antes de nos despedirmos, novamente em um abraço de quem se conhece a vida toda, e um “boa noite” sincero de quem queria estar dizendo “abençoados sejam os dias e as noites a partir deste momento histórico!”

Entrei em casa emocionada, um par de andares depois. Que bonito ver que há ainda sincero amor pelo próximo nas portas ao nosso redor.

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Camila Smid

Deixo palavras por todos os cantos, algumas por acidente, outras por encanto.